ASSOCIAÇÃO 25 DE ABRIL – 17/11/2023
DA GUERRA NUNCA SE VOLTA
(Os Caminhos Cruzados da Guerra Colonial)
INTERVENÇÃO
Boa tarde, amigos, companheiros, camaradas!
Normalmente faço a intervenção no fim das sessões. Neste caso julgo ser necessário contextualizar à partida este livro de memórias, minhas e dos outros intervenientes, certamente similares às de milhares de camaradas ex-militares anónimos a quem pretendemos dar voz!
Trabalhámos mais de dez anos neste projeto! Não foi em exclusividade, claro. Desde a publicação de “Guerra Colonial, a Memória Maior que o Pensamento”, em 2009, publicámos outros livros (este é o 12º!) sempre com enorme prazer. Como diz o ditado popular, “quem corre por gosto não cansa!”. Ou como dizia Gonçalo Anes Bandarra, o sapateiro de Trancoso, arauto das profecias:
Em dois sítios me achareis
Por desgraça ou por ventura
Os ossos na sepultura
A alma nestes papéis
Tínhamos esta obrigação histórica! Contar as memórias, próprias e de outrem, do conflito que atormentou durante demasiados anos a vida de Portugal e dos portugueses. A nós roubou-nos quase quatro dos melhores anos da juventude!
Naturalmente já outros o fizeram nestes 50 anos após a Revolução de Abril e o fim da Guerra. E foi Guerra Colonial porque se tratava de Colónias e não de “Províncias Ultramarinas”, como há “última hora” Oliveira Salazar e Franco Nogueira inventaram para disfarçar o colonialismo de 500 anos!
Para que a história não seja um mero repositório de factos, ou a narrativa cronológica e inútil dos acontecimentos – como escreveu Ladislau Batalha no “Ávante” (jornal socialista publicado no Barreiro no início do século XX), é necessário perceber a essência e o significado profundo (social, económico e político) dos acontecimentos históricos, para se compreender melhor o que se passou ontem, o que está a acontecer nos dias de hoje e poder perscrutar os caminhos do futuro.
Foi o que procurámos fazer neste livro “Da Guerra Nunca se Volta”, um título filosófico pleno de significado, seguindo cinco direcções principais:
1ª - Caracterizar e clarificar o “Colonialismo Português, em África”, tratado em Apêndice, e o seu longo cortejo de cinco séculos de exploração, escravatura, revoltas, opressão e morticínios. Feito de uma forma sintética mas rigorosa e precisa, não se tratando de uma obra académica, outrossim de um contributo memorialista sério.
* Podemos constatar logo à chegada ao distrito de Tete, o estadio das populações acantonadas em “aldeamentos estratégicos”, para onde foram empurradas nos finais da década de 60 – seguindo a orientação dos americanos entretanto derrotados no Vietname! Os recalcitrantes tinham sido liminarmente eliminados segundo o relatório do padre português Luís Costa. A vida no aldeamento de Chipera era miserável, o único negócio próspero era a prostituição! Ainda retemos a imagem da fila de miúdos andrajosos com as latinhas na mão para receberem a sopa aguada do rancho e um pedaço de pão. Da mesma sopa comiam os soldados, oriundos dos Açores, que só tinham colheres distribuídas. De facto não precisavam de garfo e faca, carne era coisa só para os dias de festa! Estamos a falar do ano de 1972, não foram precisos 13 anos para perceber a dimensão do drama e da ignomínia do execrável colonialismo militarista!
2ª - Relevar a luta dos povos de Angola, da Guiné, e de Moçambique pela sua libertação nacional, com o sacrifício de centenas de milhares de vítimas da orientação imperialista dos governos do fascismo em Portugal. Infelizmente essa luta ancestral contra os impérios não terminou noutros pontos do globo!
* Quando chegámos à Beira em Outubro desse ano de 1972, o jornal “Notícias da Beira” relatava com fotos os assaltos de “bandoleiros” aos machibombos, na estrada Beira-Vila Pery. Na reflexão com o António Marquês, um fraterno camarada já desaparecido que hoje recordamos, desconfiámos:
- Bandidos? Ná!...Isto deve ser a Frelimo!
- A Frelimo no distrito da Beira, na estrada internacional? Olá!...
Era de facto a Frente de Libertação de Moçambique que, derrotando o megalómano Kaúlza de Arriaga (cantara vitória na RTP em Agosto de 1970, após a famigerada operação Nó Górdio), retirara os guerrilheiros de Cabo Delgado e trouxera-os para Tete, ameaçando destruir a Barragem de Cabora Bassa, mas passando o Zambeze para o território de Manica/Sofala onde quase não havia tropas. Estrategicamente: Samora 10, Kaúlza 0!
3ª - Mostrar os horrores (também as solidariedades!...) de uma guerra fratricida que o regime de ditadura teimou em manter com o sacrifício de dezenas de milhares de vidas (mortos, feridos, estropiados, traumatizados). Mais de um milhão de jovens portugueses esteve na guerra colonial!
* A capa do livro com fotos originais cedidas pelo camarada de guerra Victor Pessa e tratadas pelo meu “casulo” Álvaro Teixeira, encerra um drama terrível, que perpassa por todo o livro, do malogrado capitão miliciano Celestino da Cunha que em Agosto de 1972, pouco antes de chegarmos, foi atingido numa perna durante uma emboscada e morreu durante a evacuação. Disso falará melhor o camarada Manuel Ferreira que viveu esse acontecimento trágico.
Um caso impressivo entre os milhares de vítimas que custaram os treze anos de criminosa política do regime de Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano. A História ainda não julgou devidamente os ditadores que alguns procuram recuperar. Não deixemos! Com o nosso testemunho, por isso aqui estamos hoje! Obrigado por terem vindo!
4ª - Honrar a opção sacrificial daqueles que nas FA e na Guerra Colonial em particular, resistiram, contrariando e confrontando o militarismo, a obediência cega, a alienação: pela denúncia, pela postura passiva, pela insubordinação, por acções concretas contra o aparelho militar. Por isso muitos pagaram um custo elevado (detenções, castigos disciplinares, prisão, torturas, penas militares, despromoções).
* É longa a história do militarismo nas Forças Armadas, desde o golpe militar reaccionário que pôs fim à República, em 28 de Maio de 1926. Tão longa como a história da resistência no seu próprio interior.
- Nos anos 30 de século XX, as tentativas de reverter a situação através de pronunciamentos militares (o chamado reviralho!), foram ferozmente reprimidas com centenas de mortos, a deportação e a eliminação de muitos graduados – disso nos falará um dia o professor Luís Farinha.
- Na repressão dos marinheiros em 1936 (a célebre Revolta da Marinha, dirigida pela ORA – Organização Revolucionária da Armada, de inspiração comunista). Oliveira Salazar mandou construir o Campo de Concentração do Tarrafal em Cabo Verde ( o campo da morte lenta), para onde mandou mais de uma centena de marinheiros sem julgamento.
- De braço dado com a polícia política o Exército incorporou no Batalhão Disciplinar de Penamacor os presos políticos saídos das prisões como aconteceu, entre outros, a Álvaro Cunhal e a Aboim Inglês.
- Mais próximo de nós, em 1969, alterando a lei 2137/68, o governo de Caetano/Saraiva, mandou incorporar compulsivamente 49 dirigentes e activistas da Associação Académica de Coimbra, enviados depois para a guerra.
5ª - Relevar e fazer justiça ao “esquecido” papel dos militares milicianos incorporados à força (muitos optaram por serem refractários ou pela deserção!), que ao longo dos últimos anos de guerra contribuíram pela acção (ou pela inacção!), para a tomada de consciência dos militares profissionais patriotas que se levantaram no glorioso 25 de Abril de 1974, derrubando o regime fascista.
* Nos anos 70 foram milhares os jovens arrancados às escolas, penalizados por “mau comportamento” ou por exclusão numa única cadeira, como aconteceu nos Institutos Industriais.
Erro político fatal do fascismo que levou os protestos, a insubmissão e a revolta para dentro das FA (que de resto existiram desde os primórdios da mobilização para a guerra!), com agitação, documentos de denúncia, pichagens, levantamentos de rancho, até recusas de embarque. Foram às centenas os castigos, detenções, prisões disciplinares, despromoções, entregas à PIDE, torturas, julgamentos, penas de prisão em Caxias e em Peniche.
Essa história está por fazer no essencial, temos pena de não ter tempo para realizar um levantamento exaustivo. Referimos a título exemplificativo os casos conhecidos de, Júlio Pinto, Fonseca Ferreira, Acácio Justo, Barros Moura, Octávio Rodrigues e do autor.
*Os intervenientes convidados, a quem agradeço a participação fraterna, irão certamente abordar outros aspectos particulares ou mais gerais do livro em apreço!
Aproveito ao terminar para:
• Agradecer as múltiplas contribuições de muitos amigos na recolha de testemunhos, no aconselhamento literário, no tratamento de texto, nas correções e revisões, na construção do Prefácio e do Prólogo, no arranjo da Capa e da Contra-Capa, no tratamento das fotografias em projecção, na edição e na divulgação/venda do livro;
• Assinalar a participação solidária do Movimento MilAbril (Movimento de ex-militares milicianos por Abril) que nasceu por esta ideia de ajudar a construir o livro e continua a trabalhar para fazer justiça ao papel dos milicianos no processo que levou ao derrube do regime e à construção de revolução democrática.
• Agradecer à Associação 25 de Abril que cordialmente e de forma prestável nos recebe pela segunda vez;
• Estender o agradecimento aos animadores da música e da poesia, “velhos” companheiros de estrada que estão nestas andanças comigo há muitos anos! Alargá-lo aos amigos que prepararam a sessão e organizaram o convívio.
• Um obrigado com amor à companheira que participou e viveu de forma dolorosa os relatos que preenchem uma parte do livro, continuando a apoiar nos quase 30 anos de escrita que nos rouba muitas vezes o convívio familiar e social. Alargá-lo aos familiares que nos tem apoiado com carinho.
• Alargar essa saudação a todas as companheiras que viveram os dramas da guerra colonial.
• Um sentido agradecimento aos companheiros e camaradas que pela lei da vida nos foram deixando, e que por contribuições valorosas para esta obra e para o seu autor, da lei do esquecimento se libertaram. Por isso o oferecimento do livro autografado aos familiares de José Saraiva, Dourada Mendes (protagonistas do livro) e de Mário de Pádua (prefaciador).
Em sua memória e das boas recordações que nos deixaram de camaradagem, solidariedade, coragem e fraternidade, propomos: (Aplauso de pé/ Ou um minuto de silêncio).