segunda-feira, 5 de abril de 2021

O NIASSA

 O NIASSA

O navio transportava jovens militares como gado, empilhados, rumo a um continente desconhecido e a uma guerra que os marcaria para sempre. Salazar ainda governa - por pouco - mas vê surgirem as primeiras contestações à guerra que, em África, consumia toda uma geração.

Alheia a tudo isto, no dia 21 de Abril de 1971, uma multidão de mancebos acorre ao cais de Alcântara e embarca no paquete Niassa rumo ao desconhecido.

As condições que encontraram a bordo para uma viagem tão longa não podiam ser mais elucidativas do que os esperava.

Durante três semanas – que não contavam para a “contabilidade” da tropa - os jovens entretinham-se com o que havia, sobretudo jogavam à batota, por vezes até de madrugada, com as cartas a circular de mão em mão.

Era uma atividade formalmente não aceite, mas tolerada pelos superiores, embora pudesse ser motivo de conflito por parte dos maus perdedores – e alguns perderam muito - e permitisse lucro fácil aos mais afortunados, que amealharam dinheiro e objetos: máquinas fotográficas, relógios…tudo servia para pagar dívidas e esquecer o local onde estavam e o que ali os trazia.



Nessa viagem, a par de tantos rapazes anónimos vindos de todo o País, seguia o cantor Edmundo Falé, que contribuiu para alguns momentos de alegria e descontração, ao oferecer aos seus camaradas de armas um “concerto” em pleno oceano.

Os dormitórios, por outro lado, apresentavam um panorama bem menos suscetível de merecer aplausos: consistiam numa estrutura metálica que ocupava as entranhas do navio e se estendia por vários andares, separados por um pavimento em tábuas de madeira, sem forro ou outra qualquer proteção isolante.

A algazarra era, por vezes, infernal e, nas compridas noites oceânicas, à falta de melhor local, os militares urinavam ali mesmo, “brindando” os seus companheiros dos patamares inferiores com uma desagradável chuva noturna que chegava a percorrer os três pisos improvisados onde dormiam mais de dois mil homens.

A sorte e o destino geográfico que lhes estava atribuído pelas forças armadas ditavam quem ficava em cima e quem devia resignar-se a ficar por debaixo.

Obedecidas as rotinas obrigatórias, os dias eram passados preferencialmente no convés, onde também se tomavam as refeições. Era espaço mais arejado, mas também sujeito ao sol inclemente e à chuva, que marcou alguns dias da viagem. Quando assim era, não havia lugar para estar ou comer e não foram raras as ocasiões em que o almoço era tomado na casa de banho, entre a vontade de matar a fome e a náusea dos cheiros envolventes.

“O gado hoje viaja em melhores condições que as que nós tivemos para ir servir a pátria no Ultramar, a bordo do Niassa”, conta quem assim viajou entre Lisboa e Lourenço Marques, rumo a uma guerra que mal se compreendia, deixando mãe sozinha, namorada e emprego fixo na metrópole.

Tudo em espera por dois anos, na melhor das hipóteses.

E esses eram os venturosos, porque o pior cenário era o regresso do soldadinho numa caixa de pinho, como cantou Zeca Afonso.

A multidão sem nome continuou a embarcar para a guerra colonial, mesmo depois da morte de Salazar, mesmo depois da “primavera marcelista”, até que, a 25 de abril de 1974, um grupo de militares fez cair o regime e, ainda que de forma atabalhoada, acabou com a guerra colonial, 13 anos depois do seu início. Quanto ao Niassa, serviria até 1978, mas seria alvo de um atentado bombista, quando se preparava para levar mais um contingente de tropas, em 1970.

Mas isso é outra história…

(testo copiado do Blog osaldahistoria.blogs.sapo.pt)

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