quarta-feira, 10 de junho de 2020

VIAGEM DE COMBOIO DA BEIRA A MOATIZE

VIAGEM DE COMBOIO DA BEIRA A MOATIZE
A viagem de comboio que tivemos de fazer em Moçambique em Maio de 1971, pelas piores razões, (a guerra colonial) entre a Beira e Moatize, a terra das minas de carvão que se extrai quase puro da natureza, envolta em mistérios e tensões. Após a chegada do navio Niassa à Beira, o comboio foi o transporte para um local no fim do mundo que desconhecíamos, nas imediações da Barragem de Cabora Bassa na outra margem do rio Zambeze. 
Pior do que o cansaço e das indigestões das rações de combate com salsichas intragáveis made in Africa do Sul, era a ideia que transportávamos na cabeça, de como cada um se iria sair da lotaria da vida ou da morte nos 2 anos a ultrapassar. 

Embarcámos na Beira de manhã, percorremos toda a viajem num comboio pouca terra com assentos de madeira todo desengonçado a que só os nossos verdes anos conseguiam resistir. Mas na própria desgraça, há sempre momentos de alguma descontracção. Ao raiar da manhã, começamos então a ver a paisagem física e humana do imenso interior de África. 
Quando chegávamos a um apeadeiro (eram apeadeiros, não Estações como cá as conhecemos), vinham os meninos descalços e famintos a oferecer bananas e alguma água que retiravam dos poços, a troco da oferta de algumas latas de sardinhas de conserva e salsichas das rações de combate.
Quando partíamos perguntávamos: agora a próxima paragem é em tal sitio, ainda fica muito longe? É já aí à frente. 

O é já aí, eram mais 4 ou 5 horas de viagem. As distâncias de África, funcionam noutras escalas e quem estiver em Lisboa, por exemplo, o Porto é já aí. Com o avançar do dia chegou “ao pouca terra”, o sol impiedoso do distrito de Tete, onde se atingem temperaturas de mais de 40 graus. Agora era o calor, as moscas e os insectos a perturbar aquela viagem rumo ao desconhecido. E as visões mirabolantes estavam ainda para acontecer. À medida que avançávamos para a zona operacional de guerra, começamos a ver alguns camaradas nossos já velhinhos na guerra, meios cacimbados pelo isolamento de cabelos e barba mais parecido com a dos gringos do Oeste a patrulhar a linha a pé em grupos de apenas 2 ou 3 elementos por troço. Chegávamos à zona das terríveis minas comandadas à distância para que explodissem a meio das carruagens e fugir à protecção das máquinas rebenta minas colocadas à frente. Primeiro uma depois outra e depois dezenas de carruagens tombadas junto à linha com destroços ferrugentos deixados ao abandono depois do rebentamento das minas que nos alertavam que aquilo nos 2 anos que se iam seguir era mesmo a sério.
Ao anoitecer, com 24 horas de viagem e a cheirar àquelas intragáveis latas de salsichas da ração de combate, alcançávamos finalmente Moatize, terra pequena mas onde havia já uns vestígios de civilização tivemos a oportunidade de comer um bom bife com batatas fritas, no meu caso numa pequena cantina de uns senhores da Beira Baixa que há alguns anos ali se tinham instalado à semelhança de muitos outros cantineiros, chamavam-se assim e até tiverem um papel interessante na própria guerra, pois alguns davam-se bem com os guerrilheiros os quais iam tomar umas “canhas” frescas às suas cantinas espalhadas pelos locais mais recônditos do território. Esses cantineiros procuravam riqueza fácil a vender cerveja fresca e outras bebidas que "punham a cabeça grossa para esquecer tristeza" bastando para isso investir em 2 frigoríficos a petróleo. 
A tropa velhinha que estava por ali com os camuflados já a dar para o debotado, perguntava em jeito de gozo e de humor negro aos checas acabadinhos de chegar da Metrópole com as fardas aprumadinhas e ignorantes em matéria de guerra. Para onde vai a tua companhia pá? Vai para um local que nos disseram na Beira que se chama Chipera !!!
Ah, Chipera, do outro lado do rio. Olha estão fud..... , poucos saem de lá vivos.
Em cima do cansaço e da alucinação causada pelas carruagens desfeitas, do cheiro nauseabundo das salsichas, tínhamos outro inimigo: o boato. Não era por acaso que depois começámos a ver a psico montada pela tropa com cartazes em Moatize e depois na Picada até Chipera a dizer aos recém-chegados: cuidado não dês ouvidos ao boato, o boato fere mais que uma lâmina.
O que se passou nos 2 anos a seguir foi árduo e triste...
Um agradecimento especial ao meu amigo José Abílio Mourato.

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