quarta-feira, 10 de junho de 2020

RELATÓRIO DE ACÇÃO 02/71

RELATÓRIO DE ACÇÃO 02/71 - 121408JUN71
A noite até estava serena e luminosa. 
Quem tivesse caído ali de paraquedas não poderia imaginar o quanto todo aquele ambiente tinha de sinistro. Ao longe ouviam-se as hienas que rondavam o aquartelamento.
A conversa não estava muito animada daquele dia. O tema principal era a hipótese de um qualquer de nós ficar ferido em combate, quer por tiro ou por mina.
Recordo o Sousa (furriel Sapador, António Antero Encarnação Sousa), dizer que tinha alguma dificuldade em aceitar o facto de alguma vez poder sofrer um acidente do género. Até porque o Sousa tinha de se deslocar logo pela manhã para a zona do Matundo ali mesmo junto ao rio Zambeze para escoltar a coluna de reabastecimento que vinha de Chicoa carregada de mantimentos e outras coisas, para Chipera. 
Até aquele dia ainda não tínhamos tido acidentes de maior apesar de nos terem dito que a Frelimo estava a intensificar as suas acções no distrito de Tete. As notícias não eram animadoras e estávamos preparados ao fim de 3 meses a enfrentar as agruras da guerra, fosse ela o que fosse. Todos nós durante a recruta e depois na especialidade podemos testemunhar o quanto era difícil por vezes enfrentar alguns dos exercícios que eramos obrigados a fazer.
A conversa já ia longa e o ambiente ameaçava ficar pesado e desistimos da conversa e foi cada um para sua cama.
O dia amanheceu como tantos outros, até àquele dia. Ninguém poderia imaginar o quanto este dia iria ficar marcado para sempre na memória de algumas pessoas, incluindo eu.
Na messe vários camaradas tomavam o pequeno almoço, como habitualmente e depois de dois dedos de conversa, todos se deslocavam aos seus postos de trabalho.
A conversa da noite anterior ainda martelava na minha cabeça.
O dia estava calmo sem outras previsões que não fosse o calor excessivo que se fazia sempre sentir. Por entre Mensagens, Sitreps (relatórios de situação) que eu escrevia e depois passava na máquina de Stencil, rodando a manivela tantas vezes quantas as cópias que eram necessárias.
Naquele dia não havia prisioneiros para interrogar.
A manhã avançava e o calor apertava cada vez mais, a temperatura subia a olhos vistos. O distrito de Tete é das zonas mais quentes de Moçambique, sendo que o mês mais quente do ano é Novembro com uma temperatura média de 30.0 °C. O clima prevalecente em Tete é conhecido como um clima de estepe local. Em Tete o ano tem pouca pluviosidade.
Pelas 12,14 horas do dia 08 de Junho foi dada ordem de saída de uma coluna de socorro, formada por Unimog 404 e uma ambulância, para socorro da coluna auto transportada que vinha de Chicoa.
Vários voluntários se juntaram logo para irem em socorro dos camaradas feridos. Eu saltei para dentro da viatura ambulância e lá fomos picada fora até ao local do incidente.
Pouco antes de chegarmos ao local do incidente, pudemos ver o helicóptero, levantar voo com o ferido mais grave. A causa tinha sido o rebentamento de uma mina anti-carro, que rebentou do lado onde o Furriel Miliciano Rec. Inf. Filipe Jorge Queiróz Mendes, vinha fazendo o reconhecimento à vista do terreno. O acidente deu-se logo depois de uma curva apertada onde a visibilidade não era a melhor, mesmo para quem viesse em cima de uma viatura. O Furriel Filipe Mendes, aquando do rebentamento foi projectado ao ar e foi cair em cima de uma mina anti-pessoal, provocando-lhe graves ferimentos no corpo.
Simultaneamente alguns soldados que vinham em cima do Unimog também foram projectados e dois deles ao caírem no chão accionaram duas minas anti-pessoal, ficando estes em estado considerado grave e outros com ferimentos ligeiros. O condutor do Unimog e um outro elemento que seguia na frente da viatura sofreram ferimentos graves porque o rebentamento se deu na roda da frente do lado direito da viatura.

Quando chegámos, saltámos da viatura ambulância, para a picada e tomámos consciência que a situação era crítica. Na zona alguns soldados sem terem a noção do perigo que os rodeava, tentavam desesperadamente apanhar alguns animais que entretanto tinha fugido e andavam por ali.
Ao meu lado, se a memória não me atraiçoa, estava o Alferes Médico Candeias que se posicionou do lado esquerdo da picada, ficando eu do lado direito, no meio da picada ficou o 1º Cabo Rec. Inf. Arnaldo Ribeiro de Castro.
Logo que demos os primeiros passos e a poucos metros da ambulância o 1º Cabo Castro accionou uma mina “anti-pessoal” reforçada, que me projectou pelo mato dentro numa distância de mais de 10 metros. Com os ouvidos a zunir e meio “apardalado”, tentei apanhar a minha G3 que tinha caído pelo caminho. Quando levantei os olhos em direcção do local onde tinha estado antes do rebentamento, pude ver um coluna de fumo e pó que envolvia o local.

Dou um “berro” ao meu amigo Sardinha, que estava a uns vinte metros afastado de mim e digo: “Ó SARDINHA, O QUE É QUE EU FAÇO AGORA PÁ?”. Claro que o Sardinha não podia fazer nada pois estava longe, mas mesmo assim ainda me disse: “OLHA PÁ, PÕE OS PÉS NO MESMO SÍTIO QUE EU”. Esbocei uma tentativa de entendimento da situação e aproximei-me lentamente com mil cuidados, sempre a olhar para o chão, até junto do 1º Cabo Castro.
O que vi naquele instante, ainda hoje me ensombra os pensamentos mais remotos. O 1º Cabo Castro estava estendido no chão com uma perna decepada pela mina “anti-pessoal”, coberta por terra e algumas ervas. O odor que se fazia sentir de carne queimada era intenso. Neste entretanto alguns elementos da Companhia de Caçadores 2758, já tinha tomado posições de segurança. A sua experiência era superior à nossa, eles já tinham estado em Mueda, no conhecido “Planalto dos Macondes”, onde foram flagelados imensas vezes.
Enquanto o médico tentava estancar o ferimento ao 1º Cabo Castro para que pudesse ir para a ambulância, onde seria posteriormente evacuado para o hospital de Tete, eu fiz a minha progressão de reconhecimento da situação, que aos poucos se ia tornando mais calma.
Consegui chegar junto do Unimog do Pelotão de Reconhecimento, onde estavam as “PICAS”. Naquela altura ainda não tínhamos os famosos detectores de minas electromagnéticos, que vieram trazer uma enorme evolução na segurança dos nossos soldados que tinham de se deslocar nas picadas, fazendo a sua segurança e protecção.
Foi por esta altura que o Furriel Mil Sapador, António Antero Encarnação Sousa, salta para cima do Unimog e começa a chamar os seus homens, para que começassem a picar toda a zona envolvente. Até porque com toda a certeza ainda haviam minas “anti-pessoal” espalhadas pelas bordas da picada.
O Furriel Sousa, saltou então para o chão e de “pica” na mão começou a picar o espaço em redor dele. Eu estava quase encostado a ele, pois tínhamos estado a falar. Aos poucos os soldados foram-se chegando e tomaram posições na picada de modo a garantirem alguma segurança. O Furriel Sousa de “pica” na mão estava na sua actividade, nas traseiras do Unimog.
O destino por vezes é cego e doloroso. O espaço que separava a ponta da “pica” das botas do Sousa era uma zona de minas, mas ninguém podia prever isso. 50 cm que separavam a vida da morte. O Sousa avança com o pé direito, com todo o cuidado e depois com o esquerdo. No momento em que o pé esquerdo se junta ao direito o Sousa acciona uma mina anti-pessoal que estava mesmo ali debaixo dos seus pés afastada poucos centímetros. Inevitavelmente que o accionamento da mina provocou o seu rebentamento. O Sousa accionou uma mina anti-pessoal simples com os dois pés juntos, o que lhes causou ferimentos nas duas pernas. Mais tarde veio a verificar-se que tinha ficado sem uma perna e com ferimentos na outra. Eu estava a menos de 1 metro do Sousa e não sofri (mais uma vez) nenhum arranhão.

Depois disto todos assumiram que era necessário “limpar” a zona para segurança do grupo. Foram detectadas e desactivadas ainda algumas minas anti-pessoal na zona. Com alguns feridos pelo rebentamento da primeira mina, a ambulância estava pronta para efectuar o regresso ao aquartelamento.
No dia seguinte na viagem de regresso, foram detectadas mais à frente a cerca de 250 metros do local do dia anterior, mais 1 mina anti-carro e duas anti-pessoal, que se presume terem sido colocadas durante a noite.
Já no quartel, era hora de limpar a memória dos acontecimentos do dia e para isso nada melhor que um bom duche de água fria. Foi o que fiz. Durante quase uma meia hora estive debaixo de água, revivendo todos os momentos porque tinha passado. As lágrimas corriam-me pelo corpo molhado misturando-se com a espuma do sabonete.
Não jantei nesse dia. A minha visão de guerra estava preenchida, daqui para a frente iria ser uma pessoa diferente, disso não restavam dúvidas. Um dia de cada vez.

Victor Pessa - Furriel Miliciano

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