terça-feira, 6 de abril de 2021

O MEU PAI

Já era para ter escrito isto há algum tempo mas mais vale tarde do que nunca. É um assunto controverso para muitos, mas não para mim, que indirectamente, senti na pele, de certo modo as consequências de uma guerra sem razão. É um assunto que é muito pouco falado.

Cresci a ouvir que o meu pai e os meus tios lutaram no Ultramar. Ouvi as histórias daquela altura principalmente, pela boca da minha mãe, que sofreu por ter 2 irmãos na guerra e um outro irmão sempre na iminência de ir até ter-se dado o 25 de Abril. 

O meu pai praticamente não me contava nada, apenas que foi para Moçambique em 71 e voltou em 73, mostrava-me as fotos que ele guardava mas só quando eu lhe pedia, e lá me dizia os nomes dos amigos e de locais  como Tete, Vila Junqueiro, Beira, Lourenço Marques, Vila Manica, Chicoa, que se calhar se não fosse ele nunca iria saber. Nos tempos livres jogavam à bola, futebol ou andebol, era o que ele mais gostava de fazer. Pouco mais dizia.

Só quando eu já era maior me explicou a cicatriz na perna e percebi porque o colo dele, que eu tanto adorava era diferente de qualquer outro. Mancava ligeiramente e para mim era um balanço que me sabia tão bem! E quando soube da mina que rebentou e quase o fazia não regressar ainda passei a gostar mais do colo dele. Disse-me que tinha ainda estilhaços de quando a mina rebentou. 

Tinha um álbum com as fotos num armário no corredor, fechado à chave, e volta e meia eu ia lá ver mesmo sem ele saber. Era pequenina, quando o vi pela primeira vez, era um álbum azul, cheio de fotos, todas a preto e branco, fotos com vários rapazes, na maior parte das vezes sorridentes, fotos do meu pai, umas a sorrir, outras sério, outras com armas, ou a fazer palhaçadas. Fotos de paisagens. Fotos de acidentes. Apesar de ele dizer que era ele, um rapaz de 21 anos sem barba. Eu não reconhecia pois para mim o meu pai sempre teve barba e não mexia em armas, nunca foi agressivo,  era bastante pacífico e se pudesse ajudar lá estava ele. Não fazia muito sentido para mim, com aquela idade.

A primeira vez que vi esse álbum, era mesmo muito pequena e deparei-me com uma foto em especial que nunca mais me esqueci e que me fez perceber o que é uma guerra e o que se faz e o que se vê por lá. Nunca perguntei ao meu pai se matou alguém, não foi preciso. É uma guerra, ou se morre ou se mata. É uma questão de sobrevivência. Nunca lhe perguntei, porque via nos olhos dele quanto ele sofreu por lá. Tal como nunca perguntei se algum amigo morreu lá. Claro que morreu, nem se pergunta! É uma guerra!

Levou-me a mim e à minha mãe a um almoço convívio de ex-combatentes. Eu era muito pequena, mas lembro-me de um amigo dele dizer que o meu pai era muito amigo dele e que era um maluco mas que ninguém ficava para trás com ele. Era magrinho mas tinha força. O meu pai, um rapaz magro, levava as mochilas dos camaradas quando eles não aguentavam mais, ou ajudava a carregar alguém a ombros. Se já era o meu herói tornou-se ainda mais.

Vai fazer 50 anos este mês que ele partiu para Moçambique, no Niassa, um navio sem condições que levou tantos mancebos para o Ultramar, sem saberem ao que iam. Eram miúdos! O meu pai tinha 21 anos apenas. Muitos tal como o meu pai, nem disseram às mães que iam combater no Ultramar, simplesmente saíram dos quartéis e foram para Lisboa seguir o seu destino, fosse ele qual fosse. Ainda me recordo da minha avó a falar-me da angústia de não saber dele. Só soube depois e passou 2 anos sem o ver. Nem imagino a dor e a angústia! 

Há uns anos atrás, pedi-lhe algumas fotos para digitalizar e lá me contou mais alguma coisa. Uma foto de um veiculo que parece um monte de sucata. – “Foi uma mina. Eu era para ter ido nesse”. Uma foto de outro veículo capotado. – “Esse foi do meu acidente também por causa de uma mina que rebentou. Encontraram-me, desmaiado, preso entre duas rochas. Não caí na ribanceira graças a isso.” Uma foto dele todo vestido de branco. – “Esta é no hospital de Lourenço Marques, agora Maputo. Cheguei aos 38 quilos, por causa da onda de choque da explosão.” 

Felizmente ele voltou pois senão eu não estaria aqui. E os meus tios também, um foi para Moçambique, tal como o meu pai pela mesma altura e o outro para Angola um pouco mais tarde. Foram rapazes, vieram homens, por força das circunstâncias. Por causa de uma guerra que para muitos nem era deles, de uma guerra sem razão. 

Simplesmente, eu bem tento, mas não consigo imaginar nem de perto como eles se sentiram quando foram destacados, quando iam a caminho do seu destino, quando chegaram lá, quando tiveram o primeiro ataque, viram a primeira morte ou tiveram de matar.  As picadas que o meu pai fazia tantas vezes, nem imagino o medo que sentiam. Emboscadas, minas, nem consigo ter uma ideia. Nunca percebi muito bem o porquê de terem de passar por tudo isso. 

Tantos como o meu pai, já não vieram os mesmos que foram, vieram com muitas cicatrizes, se não físicas, psicológicas. Com tantos traumas, o agora tão falado Síndrome pós traumático. O SPT nos ex-combatentes do Ultramar sempre foi desvalorizado e que tanto prejudicou famílias inteiras incluindo a minha. Era coisa nova. O meu pai nunca recuperou da guerra, ficaram marcas profundas que ele não conseguiu sarar. Toda a família sofreu por isso. Eu que já o conheci no pós guerra não sei como ele era antes mas tal como os outros veio com certeza muito diferente. Quando fui ao almoço convívio em pequena, (pouco me lembro pois era muito pequena mesmo) mas recordo-me dele a conversar com os amigos e camaradas. No final do dia, quando voltávamos para casa, isso a minha mãe contou-me recentemente, que ele chorou o caminho todo de volta. Se vi o meu pai chorar uma vez foi muito. O que terá passado na cabeça dele? Alguma emoção que estava contida há anos deve ter voltado quando viu os amigos e relembrou as histórias daqueles 2 anos. Esse reencontro deixou-o mesmo muito abalado. Não são só eles que sofrem mas toda a família, levando várias vezes à auto-destruição, como aconteceu infelizmente com o meu pai. 

Resolvi escrever isto não só em memória dele mas porque após o falecimento dele entrei em contacto com alguns amigos e camaradas do batalhão dele e percebi o quanto eles se sentem esquecidos e incompreendidos. 

O meu pai quase sempre estava no mato mas quando tinha licenças ia à cidade e chegou a ouvir comentários de portugueses que viviam lá. Lá estavam esses portugueses, sentados relaxadamente em esplanadas a comer camarão e a beber cerveja e quando viam mais soldados a chegar comentavam: “ - Lá vem mais carne para canhão!”

Os desertores foram considerados os heróis e eles que combateram lá foram considerados assassinos e criminosos. Não digo que em guerras não hajam atrocidades de ambos os lados mas a maioria que lá andou só queria sobreviver e voltar para casa. Era matar ou morrer. E só quem passa por isso é que pode opinar. E tenho orgulho porque por mais difícil que tenha sido, com o meu pai aprendi valores que tento passar aos meus filhos. Aprendi a ser corajosa, a ter confiança em mim e nos que me estão próximos, a ser leal, a ter espírito de ajuda. 

A maioria não vai ler nem metade mas se houver alguém que tenha lido já fico um bocadinho contente. Fica a minha lembrança e o meu testemunho, que vale o que vale, em memória do meu pai, Rogério, do meu tio e padrinho Rui, e em homenagem ao meu tio Vitor, 3 ex-combatentes com quem lidei toda a minha vida e que sacrificaram não só a sua juventude mas o resto da sua vida devido a uma guerra estúpida que nunca devia ter acontecido. Em homenagem a todos os ex-combatentes, lembrando os do Batalhão de Caçadores 3843 de que o meu pai fazia parte, nomeadamente da Ccaç3355, e em memória de todos os ex-combatentes que faleceram. 

Apenas tento que as histórias deles não sejam esquecidas. Tento que eles não sejam esquecidos! Mas há ainda tanto por dizer.
(Diana Pacheco - filha)

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