domingo, 15 de abril de 2012

DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS!

João Paulo Ramos, ex- Furriel Mil.º AP de Infantaria, 2.ª Companhia de Caçadores do Batalhão de Caçadores 4810/72, conta-nos a sua breve história em Cantina de Oliveira.
No sitio do http://ultramar.terraweb.biz podemos ver na integra a sua história, Moçambique - João Paulo Ramos, ex- Furriel Mil.º AP de Infantaria, da 2.ª Companhia do BCaç4810/72, que transcrevo aqui para vosso conhecimento, até porque o mesmo fala mais em baixo, da nossa companhia 3356, que lá esteve sediada.

"Alguém, sabiamente, plasmou numa tabuleta à entrada do quartel, letras brancas sobre fundo vermelho, as palavras do Canto III da Divina Comédia - a Porta do Inferno - e todos nós, mesmo os que não entendiam o significado daquelas palavras, intuíamos que não auguravam nada de bom. Sentíamos um arrepio ao ler aquela descrição/ premonição sobre a passagem por aquele Portal do Inferno. Era a entrada numa dimensão desconhecida, no reino da incerteza e da dor.


Por decoro e piedade não foi transcrito o verso final, absoluto, definitivo: “DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS!”

Cantina Oliveira, também conhecida por Cantina de Oliveira, ou Cantina do Oliveira, tinha aproximadamente as dimensões de um campo de futebol. Um rectângulo de uns 120 por 70 metros. Era cercada a toda a volta por uma paliçada feita em troncos de madeira com 1,70 m de altura por 1 m de espessura. Não fosse esta paliçada ter menor altura e poder-se-ia dizer que estávamos dentro dum forte daqueles que ainda hoje podemos ver nos filmes de índios e cowboys! O quartel, ligeiramente elevado, situava-se no centro de um planalto com vários kilómetros de diâmetro. Esta localização permitia ter uma boa visão em toda a volta e salvaguardava o seu interior de ser atingido por tiro tenso (metralha, RPG's e canhões sem recuo). Era apenas permeável ao tiro curvo (morteiro 82 e foguetes 122 mm).

O aquartelamento terá sido edificado sobra as ruínas de uma cantina cujo proprietário, de nome Oliveira, se finou às mãos da Frelimo.

Ao longo do lado norte ficava a picada que, vinda do Bene, passava sucessivamente pelos rios Luía e Capoche. Com Cangombe pelo meio, chegava a Cantina Oliveira oitenta e tal km depois. Daqui seguia para o Fingoé. Para nossa sorte o troço entre o rio Capoche e Cantina Oliveira já estava desactivado mesmo antes da chegada da nossa companhia. A ponte sobre aquele rio tinha sido destruída. Este itinerário só foi reaberto em 1975. Constou naqueles tempos que estava de tal maneira sobre-minado, que fez, ainda, largos estragos entre os militares e civis que o foram reabrir.

Contígua ao quartel ficava a pista de aviação, paralela à picada para Vila Vasco da Gama, local onde estava destacado um grupo de combate da companhia. Esta picada para o destacamento estava interrompida na passagem do rio Mucumbuzi, pelo que também se encontrava desactivada na sua totalidade.

Aquando da recepção das instalações do quartel das mãos da companhia ali sedeada até então (CCaç 3356) foi constatada a necessidade de melhorar as condições de alojamento dos militares a nível da comodidade e da segurança. Uma das grandes preocupações do comandante da companhia, capitão miliciano Lobo Pimentel, foi, em geral, reforçar as instalações do quartel em termos de segurança passiva e activa, pelo que todo aquele dispositivo foi reformulado.  

Assim, circundando a paliçada passaram a estar duas redes de arame farpado. Estes aramados eram duplos, situando-se o interior a uma distância de uns 30 m e o exterior a aproximadamente 50 m. Num raio de 150 metros toda a zona estava capinada.

Em cada canto do rectângulo que constituía o quartel, bem como ao meio dos lados maiores, existiam abrigos para sentinelas, estando dois deles, nordeste e sudoeste, a funcionar permanentemente para esse efeito. Cada um dos seis postos de sentinela estava dotado de uma metralhadora de fita, HK-21 ou MG-42. Foi requisitado mais um morteiro 81, ficando a defesa à distância a ser feita por dois morteiros 81 e um 60 mm. 

Dois dos abrigos, situados em locais diametralmente opostos, eram torreões que foram construídos em cimento armado com uma espessura de 50 cm.

Ainda hoje, à distância de 37 anos, penso que transformámos aquele aquartelamento em algo de verdadeiramente inexpugnável. Só com meios aéreos seria possível desalojar as nossas tropas do local. Foram construídos novos e mais funcionais abrigos, pelo que a partir de meados de 1973,  toda a guarnição dormia em abrigos com um mínimo de comodidade, muito seguros e particularmente aptos para a defesa próxima.

Provavelmente sabedora das condições de defesa e de inexpugnabilidade do aquartelamento, a Frelimo referia-se a este local como sendo o Forte de Cantina Oliveira. Valeria a pena flagelar o aquartelamento só para manter alguma pressão psicológica? Na realidade não valeria o esforço e o dispêndio de munições ligeiras e pesadas! Muitas outras unidades e aldeamentos tinham bem piores condições de defesa, pelo que, do ponto de vista do atacante, o esforço de um ataque aos locais onde outras unidades estavam instaladas seria certamente mais rentável. Durante a comissão de 23 meses no local, 19 dos quais ainda durante o período de guerra e, ao invés do que aconteceu durante o período anterior à nossa chegada ao local, período esse em que o quartel foi várias vezes severamente flagelado, nunca aquelas instalações foram alvo de qualquer ataque.

Não é despiciendo o facto de a Frelimo, cuja actuação no distrito de Tete começou no primeiro terço de 1968, ter deslocado o seu esforço de guerra em direcção ao Sul, particularmente a partir de finais de 1972. O seu grande objectivo era a barragem de Cabora Bassa e a sua própria progressão para Sul.  Esta opção estratégica e táctica poupou-nos enormes dissabores.

Em combate apenas acrescentámos uma baixa mortal (e poucos feridos ligeiros) às muitas que os camaradas das valorosas companhias que nos antecederam, CArt 2452, CCav 2653 e CCaç 3356, tiveram por aquelas bandas.

Não se confirmaram em relação à nossa companhia os prognósticos anunciados no pequeno placard colocado à entrada do quartel. Não foi nada bom, mas também não foi o inferno anunciado e pelo qual outros passaram naquele e noutros locais. Fruto do acaso, da conjuntura e do comando inteligente, equilibrado e eficiente da companhia, chegámos ao final da comissão com um número reduzido de baixas, se comparado com o que se observou nas unidades militares que por ali estacionaram e pelas situadas ao nosso redor.
João Paulo Ramos, ex- Furriel Mil.

Sem comentários:

Enviar um comentário

O BCaç 3843 agradece o seu comentário.