Estáva no quartel quando de repente se houve bem perto de nós, pelo menos era essa a sensação, muito barulho de tiros e morteiros. De imediato corremos para o rádio na tentativa de saber o que se estava a passar. O poletão que tinha ido escoltar uma coluna a Chicoa estava a ser atacada já no regresso e havia baixas. De imediato se formou um grupo de socorro que partiu para o local.
De facto a situação não podia ser mais grave. Alguns feridos, o Capitão da Companhia, que estava connosco no quartel, ferido com gravidade, era uma situação desoladora. Os pedidos de evacuação já tinham sido emitidos e os helis fizeram tudo com bastante rapidez.
O Comandante da ZOT - Zona Operacional de Tete, esteve presente no local e acompanhou as evacuações conjuntamente com os nossos comandantes, Figueiredo e Vicente.
As DOs faziam também trabalho de evacuação de feridos.
Todos colaboravam na evacuação dos feridos.
A emboscada tinha sido bem montada. O alvo tinha sido assinalado e a basucada fatal não falhou. Tudo foi muito rápido. Podia ter sido muito pior não fosse a rápida percepção do condutor da Berliet, ao ouvir um tiro de pistola a assinalar o inicio da acção atacante. Este travou de imediato e atirou-se para o lado gritando que era ataque. A pouca experiencia dos demais talvez tivesse sido a causadora dos feridos havidos. Podemos ver pela foto o estrago causado na viatura. O Capitão estava sentado na mesma posição que o soldado mostra e em vez de se atirar logo para aquele lado, foi levado pelo instinto e atirou-se para o mesmo lado do condutor, perdendo daquela forma uns segundos preciosos para se salvar.
Infelizmente veio a falecer com hemorregias internas. Este camarada tinha pedido a transferência da Guiné para Moçambique porque a guerra na Guiné era muito severa e ali, pensava ele, a situação era mais calma.
Chegou-me a seguinte imagem acompanhada da carta que a seguir transcrevo na íntegra, do nosso camarada José Abílio Mourato, que fazia parte da C.CAÇ. 4241 que esteve connosco em Chipera.
Caro Companheiro Pessa:
Como a Internet é boa!!!
Recebi o teu mail (permite-me tratar-te por tu) e o endereço do blogue do B.CAÇ 3843.
Estive na Chipera entre 1972 e 1974. Fazia parte da C.CAÇ 4241.
Esta companhia não pertencia a nenhum batalhão, era independente, dependendo operacionalmente da CCS do B.CAÇ 3843, onde tu estavas. Eu Era o cabo escriturário, havia só um e esse um, era eu. Pelos vistos estivemos juntos na Chipera, pelo menos 2 meses, até que vocês rodaram para a Zambézia, em Outubro de 1972. Hoje quando abri o teu mail e fui ao blogue, chorei à frente do computador como uma Maria Madalena, E explico porquê.
Nós chegámos a Chipera em 9 de Agosto de 1972. Era já noite e eu nunca mais esqueço um camarada teu a perguntar pelo “checa” escriturário. Os das transmissões perguntavam pelos “checas” das transmissões, os da “ferrugem” pelos seus similares e assim por diante. Depois do fartanço das primeiras rações de combate, com salsichas intragáveis made South África, desde a Beira até Chipera, com paragem em Moatize e Estima, confesso que a sopa quentinha e o banho que os colegas escribas da CCS proporcionaram ao checa escriturário acabado de chegar, foi dos maiores confortos que me aconteceram. Também tinham cama para mim, nessa noite, na camarata deles.
No outro dia começámos a arrumar a tenda, até nos integrarmos no espírito da Chipera que incluía umas “visitas” à Isaura no aldeamento. Nunca me arrisquei a isso, por precaução.
O nosso capitão, Celestino da Cunha, miliciano, já quase formado em medicina, era muito meu amigo. Ele também beneficiava em ter um sargento “xico” com quem se desse bem e um bom escriturário, para administrar a logística e desde que formámos a companhia, em Abrantes, mostrou logo simpatia pela dedicação que eu tinha na arrumação da papelada. Quando chegámos à Beira, formou a companhia e disse: “chegámos à guerra e a partir de agora, juizinho para voltarmos todos à Metrópole”. Mal sabia o que lhe estava para acontecer.
No dia 24 de Agosto de 1972, tinha-me dito: “Ó Mourato, tens que falar com os mainatos para te ajudarem a colocar uma protecção nas entradas do telhado de zinco da secretaria, porque quando há os remoinhos de vento, o pó é mato em cima dos papéis, que nem consigo assinar".
No outro dia, logo de manhã, as transmissões recebem uma mensagem vinda da Chiboeia, dando conta de um violento ataque por volta da meia-noite, ao pelotão da nossa companhia que lá estava aquartelado. Afinal tinha-se concretizado aquilo que já estávamos à espera e que se tinha institucionalizado na estratégia de combate na Frelimo, o chamado “Baptismo de fogo”, normalmente com grande intensidade às companhias checas acabadas de chegar. O ataque foi feroz, arderam as instalações, quase todas feitas de capim, os frigoríficos a petróleo, uma metralhadora, destruída etc., tendo ficado feridos 4 elementos 2 dos quais em estado muito grave. O enfermeiro esteve toda a noite com os feridos mais graves tentando estancar as hemorragias na cara de um que ficou cego de uma vista. Os rádios ficaram sem funcionar e só de manhã é que nos comunicaram o acontecido, servindo-se de um rádio da milícia do aldeamento.
Organizou-se logo uma coluna de auxílio ao pelotão da Chiboeia, comandada pelo nosso capitão Cunha. Ainda parece que estou a ouvir o Major Figueiredo com o seu vozeirão e a sua experiência já de muitos meses de Chipera dizer para o capitão.”Cuidado que eles atacaram o destacamento e agora sabendo que vão lá, têm minas na picada”. A coluna de auxílio lá foi progredindo lentamente com os detectores de metais, mas minas não havia. Havia sim outra coisa bem pior: os guerrilheiros da Frelimo, vindos de outras áreas, seleccionados entre os melhores, para o célebre Baptismo de fogo dos checas acabados de chegar, com apenas 15 dias de mato, fizeram o ataque ao destacamento à meia noite e permaneceram emboscados por ali até às 11 horas da manhã do dia seguinte, à espera da coluna de apoio. Já próximo, apenas a cerca de 3 Kms da Chiboeia, com a coluna sobre a mira, fizeram um ataque brutal, atingindo alguns elementos e em cheio o capitão Cunha que ficou com a perna esfacelada e separada em dois bocados a esvair-se em sangue. Contou-me o enfermeiro Lourinho que foi quem o assistiu até à vinda do helicóptero que ele, conhecedor, pois era médico, lhe pedia para lhe dar a morfina que tivesse em seu poder para lhe aliviar as dores. Nós, os “aramistas”, seguíamos com ansiedade o que se estava a passar naquela maldita picada. O homem do rádio na picada, a tremer de medo, dizia cá para o posto, atabalhoadamente, para o major Figueiredo: “fomos atacados na picada, há não sei quantos feridos, o nosso capitão é o que está pior.” O major em altos berros dizia-lhe “Ó pá levanta-te que o fogo já passou e diz-me quantos feridos e mortos há, para eu saber quantos helicópteros hei-de pedir para a Estima.” Passado umas horas chega o séquito dos helicópteros para a evacuação na picada e também um da “psico” a sobrevoar o aldeamento da Chipera, fazendo a propaganda do costume, para a população se manter calma, porque estávamos ali para manter a paz e não para fazer a guerra.
Depois da evacuação dos feridos para Tete, ficámos ansiosos esperando notícias do capitão. Ao sol-posto, o Sargento Raposo, vinha cabisbaixo, do posto das transmissões, com uma mensagem, dando a triste notícia: “o nosso capitão morreu, não resistiu às hemorragias internas”
Esse malfadado dia 25 de Agosto de 1972, nunca mais o esqueci, assim como não esqueci as palavras que o enfermeiro Lourinho ouviu quando estava na picada com o capitão, em agonia, à espera da evacuação. Guardei sempre essa imagem como se a estivesse a ver. Já a contei dezenas de vezes.
Hoje quando fui ao blogue e vi em fotografia a perna do capitão separada em duas, preenchendo o imaginário que sempre tivera, apenas por ouvir contar, chorei sozinho em frente ao monitor. É um documento que vou guardar e pelo qual te felicito o teres eleito para colocação na opção “EMBOSCADAS”. Não fazia ideia poder haver registo de tamanha tragédia. Já mandei para alguns companheiros da C.CAÇ 4241.
Bem hajas pelo excelente trabalho que tiveste em redor do blogue.